Todas as crianças adquirem, pelo menos, uma língua, e esse processo ocorre quando elas ainda são muito novas. Em torno dos cinco anos, elas já demonstram domínio de, praticamente, todas as estruturas complexas de sua língua materna, mesmo que ainda não saibam realizar outras atividades simples com perfeição, como amarrar o cadarço dos sapatos. Essa facilidade não é observada quando nós, que já somos adultos, aprendemos uma segunda língua, não é mesmo? Então, como as crianças conseguem? Como ocorre, afinal, a aquisição da linguagem? Diferentes hipóteses foram formuladas para explicar esse processo. Nós vamos conhecê-las neste Capítulo.
É intuitivo pensar que as crianças aprendem a falar imitando o que ouvem os adultos dizer, e existem argumentos que favorecem essa hipótese. Um deles é que as crianças adquirem uma língua materna à medida que são expostas a essa língua, ou seja, com base no input linguístico que recebem. Então, crianças que escutam o português falado no Brasil (que, daqui em diante chamaremos de “PB”, a sigla para português brasileiro) aprendem essa língua. Indo ao encontro dessa teoria, caso crianças nascidas no Brasil fossem expostas exclusivamente ao japonês, elas o aprenderiam. Outro argumento é que as crianças imitam palavras, mesmo que ainda não saibam o significado delas. É o que ocorre quando pedimos para uma criança repetir “paralelepípedo” e elas o fazem, mas não tem ideia do que isso seja.
Figura 1 – Hipótese da imitação
Fonte : Pixabay.
Embora a imitação ocorra nesses contextos, o ponto é: podemos dizer que ela, sozinha, dá conta de explicar o processo de aquisição da língua materna? A resposta é não.
Para justificá-la, primeiramente, precisamos esclarecer que a língua não se resume a um dicionário de palavras que podem ser aprendidas e decoradas – como as pessoas tendem a pensar, sobretudo quando se aprende uma segunda língua. Se a língua fosse apenas isso, poderíamos formar frases colocando as palavras na ordem que quiséssemos, afinal, importaria apenas saber as palavras. No entanto, não é isso que acontece. Para se fazer entender, é absolutamente necessário saber o que vem antes e o que vem depois nas frases , por exemplo, no PB, o complemento de um verbo vem antes ou depois dele? Costumamos dizer “Comi o bolo” ou “O bolo comi”? Também é necessário saber indicar se as ações ocorreram no passado, no presente ou se ainda ocorrerão. Além desses dois exemplos, há muitas outras coisas que aprendemos sobre a língua além das palavras, o que, com certeza, não é possível codificar apenas imitando o que é ouvido.
É preciso considerar, também, que a produção dos filhos não reflete exatamente a produção dos adultos. Estudos mostram que, ao falarem com seus filhos, os pais utilizam, principalmente, perguntas e ordens, enquanto as primeiras produções das crianças envolvem sentenças declarativas, que são estruturalmente mais simples.
A criatividade também é observada desde cedo nas produções infantis, possibilitando, assim, que as crianças produzam formas não observadas na fala dos adultos. É comum ouvir crianças de diferentes lugares regularizarem verbos irregulares, como “sabo” e “fazi”. Será que todas elas escutam isso dos pais? Ou será que elas imitam outras crianças? Isso acontece com todas, então, como seria possível considerar que estão imitando umas às outras se nem todas as crianças do mundo se conhecem? Será que todas estão inventando esses verbos?
Podemos mencionar, ainda, que apesar de o input ser necessário ao processo de aquisição, ele não é suficiente. É considerado pobre e recortado/fragmentado. Isso quer dizer que a fala dos adultos não contém todas as sentenças possíveis, estando sujeita a interrupções e esquecimentos, o que poderia prejudicar a aquisição se as crianças, de fato, apenas os imitassem.
Além disso, no início do processo de aquisição, mesmo que as crianças sejam capazes de julgar a gramaticalidade de sentenças da língua – ou seja, saibam distinguir o que pode do que não pode ocorrer –, elas analisariam o input de maneira muito mais simples do que é feito no final do processo.
Concluímos, com base nos argumentos apresentados, que a imitação não explica suficientemente o processo de aquisição da linguagem, apesar de ela ocorrer em certa medida. A seguir, veremos como a hipótese comportamentalista (o chamado “behaviorismo”, proposto por Skinner) tenta explicar a aquisição da linguagem. Esse sendo, porém, igualmente insuficiente.
No final da década de 1950, o psicólogo B. F. Skinner postulou uma hipótese que ficou conhecida por “behaviorismo”, dada a tradução da palavra “comportamento” para o inglês, behavior. Em seu livro Verbal Behavior, Skinner propõe que a criança aprenda (e não adquira) a linguagem como um comportamento, conforme é estimulada e reforçada positivamente ao produzir enunciados corretos ou negativamente ao errar
Figura 2 – B. F. Skinner
Fonte : Wikipedia.
Para formular essa hipótese, o psicólogo baseia-se em experimentos realizados com animais, nos quais eles aprendem, por exemplo, que receberão alimento ao soar de um sinal ou quando uma luz for acesa, depois de executar determinada tarefa. Neste caso, o alimento funciona como um reforço positivo, dado ao animal quando ele aprende a tarefa.
Figura 3 – Experimentos que ensinam comportamentos a ratos em laboratórios
Fonte : Pexels .
Dizer que as crianças aprendem a falar por meio desses reforços é pressupor que os pais estejam sempre atentos à gramaticalidade do que as crianças produzem, o que não é verdade. Na maioria das vezes, os pais corrigem a veracidade do que as crianças dizem, também apontando se algo é ou não adequado (e educado) para o contexto. É praticamente impossível que os pais digam: “Veja, você usou a ordem errada para o PB, isso não é permitido em nossa língua”. Inclusive, eles até acham “bonitinha” a forma como os filhos falam.
Quando apontam inadequações gramaticais – o que raramente acontece – a tendência das crianças é repetir o errado. É o que vemos na regularização de verbos irregulares. Todo pai já tentou dizer ao filho que não é “trazi”, e sim “trouxe”, mas a criança continua falando “trazi”. Da mesma forma, os pais não costumam elogiar tudo o que as crianças dizem de certo e, mesmo sem receberem reforços positivos, a aquisição da língua acontece.
Em vista dessas questões, dizer que aprender a linguagem é meramente desenvolver um comportamento também não é explicar a complexidade do processo. Pelo contrário, é ignorar a incrível capacidade do ser humano de criar, fazer analogias e produzir sentenças nunca antes ouvidas, sem necessitar de estímulos ou reforços, diferentemente dos animais, cujo sistema cognitivo é mais primitivo em relação a essas questões.
Outras hipóteses que explicam a aquisição da linguagem vieram também do campo da Psicologia, como o construtivismo (de Piaget) e o socioconstrutivismo (de Vygotsky).
Skinner, Piaget e Vygotsky falam em aprender ou desenvolver a linguagem, não em adquirir. Isso porque a noção de aquisição está mais associada ao campo da Linguística que estuda a linguagem por si só, sem, necessariamente, relacioná-la a outros comportamentos e habilidades cognitivas.
Sumariamente, para Piaget, todo desenvolvimento cognitivo da criança passa pelos seguintes estágios: sensório-motor (zero a dezoito meses), pré-operatório (dois a sete anos), operações concretas (sete a doze anos) e operações formais. Isso ocorre universalmente, isto é, faz parte do desenvolvimento de qualquer criança. Conforme completa um estágio, a criança desenvolve as capacidades necessárias para o estágio seguinte, o que provoca mudanças em seu desenvolvimento. Nesta perspectiva, a criança constrói seu conhecimento por meio da experiência com o mundo físico. Vygotsky, por sua vez, defende que o conhecimento é construído na interação com o outro, sendo o outro dotado de um conhecimento maior.
OBSERVAÇÃO: As abordagens construtivista e socioconstrutivista são amplamente utilizadas no âmbito escolar para tratar do processo de aprendizagem.
É evidente que as abordagens de ambos os autores estão presentes em muitos métodos de aprendizagem no âmbito escolar, funcionando de maneira bastante eficaz. No entanto, no que diz respeito à aquisição da linguagem, ambas as hipóteses não podem explicar o processo por completo.
No caso de Piaget, não considerar o social da criança, apenas a sua experiência individual com o mundo físico, é um problema. Isso porque, como vimos, o input é necessário para que a criança adquira linguagem, embora não seja suficiente. Além disso, as habilidades intelectuais das crianças são maiores e mais abrangentes do que Piaget pressupõe, e os estágios estabelecidos são bastante rígidos, não necessariamente condizendo com a realidade dinâmica do processo de aquisição da linguagem.
Quanto às ideias de Vygotsky, lembramos que, nem sempre as interações linguísticas com os adultos implicam o que as crianças produzem. Algumas sentenças que só são observadas na fala de crianças são absolutamente criativas em termos linguísticos, o que sugere que nem tudo é aprendido com os adultos.
Uma abordagem um pouco mais recente para a aquisição da linguagem é a abordagem do conexionismo.
O conexionismo explica as habilidades intelectuais humanas por meio de redes neurais compostas de unidades que se conectam. Há unidades de entrada (inputs), nas quais as informações são recebidas, e unidades de saída (outputs), que correspondem aos resultados das informações processadas. Na Figura 4, o funcionamento de uma rede neural simples pode ser observado.
Figura 4 – Rede neural
Fonte : Pixabay.
Nesta proposta, ao receber um input, por exemplo, no verbo “saber”, a criança modifica suas conexões da rede para produzir os outputs correspondentes. No caso desse verbo, conforme a criança avançar no processo de aquisição, ela reforçará a conexão com o output “sei” e enfraquecerá a conexão com “sabo”. Em seguida, a rede pode generalizar o aprendizado para novos estímulos, como outros verbos (fazer, trazer etc.).
Apesar de o conexionismo explicar bem o que ocorre no caso da aquisição de verbos irregulares, ele não dá conta de explicar a aprendizagem de aspectos sintáticos, como restrições impostas pela língua ao uso de pronomes e aos movimentos de determinados elementos dentro da sentença. Além disso, os falantes de uma língua são capazes de identificar se uma sentença é ou não ambígua, enquanto pelas redes neurais essa identificação não é possível.
As teorias que usam o conexionismo como base não nos permitem ter, ainda, um retrato definitivo de como a linguagem seria adquirida por completo. Ainda são necessários mais estudos.
A hipótese que, até o presente momento, é a mais aceita pela linguística, para explicar o processo de aquisição da linguagem é de cunho racionalista, conhecida como “hipótese inatista”.
Nas hipóteses vistas anteriormente, observamos que a aquisição da linguagem tem características difíceis de serem totalmente explicadas por imitação, estímulo e reforço ou interação com o mundo físico e a sociedade. As produções infantis sugerem que, em torno dos três anos, as crianças inconscientemente sabem lidar com as regras de sua língua materna. Isso ocorre de maneira natural, involuntária e rápida, sem qualquer esforço ou decisão por parte da criança, sem que ela seja instruída por um adulto e sem que seu input seja facilitado ou programado para isso – ao contrário do que ocorre quando se trata da aquisição de uma segunda língua.
OBSERVAÇÃO: O “problema de Platão” possibilitou que linguistas observassem essas características no processo de aquisição da linguagem.
O fato de que todas as crianças que têm desenvolvimento típico passem por esse mesmo processo, adquirindo a linguagem perfeitamente sem precisarem de ensinamento, é chamado de “universalidade da linguagem”. Já o fato de crianças de diferentes lugares, que recebem criações distintas e fazem parte de segmentos sociais diversos, passarem pelos mesmos estágios de aquisição da linguagem e chegarem da mesma forma ao estágio final, é conhecido como “uniformidade da linguagem”.
Para dar conta de explicar que o processo de aquisição da linguagem tem essas características, é preciso postular uma hipótese que considere a existência de algo genético, isto é, programado na configuração genética humana, que seja responsável por possibilitar a toda a espécie o conhecimento das propriedades que constituem as línguas naturais. Dada essa necessidade, a hipótese inatista defende que o ser humano tenha uma capacidade inata de adquirir linguagem. Tal capacidade é conhecida como “competência linguística”, e pode ser observada pela criatividade linguística da criança e a intuição que ela tem sobre sua língua.
O teórico responsável por essa hipótese é o linguista e sociólogo Noam Chomsky.
Figura 5 – Noam Chomsky
Fonte : Wikipedia.
Considerando que todas as crianças de desenvolvimento típico sejam geneticamente programadas para adquirir uma língua e o façam da mesma maneira: por que, então, as línguas são diferentes umas das outras?
Chomsky propõe que todas as línguas obedeçam aos mesmos princípios, mas variem em algumas propriedades, que são chamadas de “parâmetros”. Por exemplo, em todas as línguas as sentenças devem ter sujeito. Isso é um princípio. Porém, algumas línguas exigem que o sujeito esteja foneticamente expresso, como é o caso do inglês, enquanto outras possibilitam que o sujeito seja nulo, como o PB. As possibilidades variam de uma língua para outra porque elas têm parâmetros específicos. Essa parte da proposta ficou conhecida como teoria dos princípios e parâmetros.
A partir dessa teoria, Chomsky defende que as crianças possuem internalizada em sua mente/cérebro uma gramática universal (que, daqui em diante, chamaremos de GU) composta por um conjunto de princípios universais, comuns a todas as línguas, e de parâmetros correspondentes a uma língua específica. A tarefa da criança ao adquirir a linguagem é, com base no input recebido, compreender como sua língua funciona, além de fixar os parâmetros a ela correspondentes. Assim, a GU guia a criança no processo de aquisição, sendo como um estágio inicial ou um ponto de partida. É por meio dela que a criança aprende as regras que regem as estruturas de sua língua materna – não no sentido prescritivo do que é certo ou errado, mas do que é gramatical (possível) ou agramatical (impossível) na língua, alcançando, mais tarde, o estágio final do processo.
Figura 6 – Funcionamento da GU
Fonte: Elaborada pela autora (2020).
Chomsky postula, ainda, que a aquisição da linguagem tem um período crítico para ocorrer. De acordo com ele, se até a puberdade a criança não tiver adquirido sua língua materna, isso não será mais possível.
OBSERVAÇÃO: Quando falamos de aquisição de segunda língua, a existência de um período crítico se torna ainda mais evidente. Já tentou, depois de adulto, ficar fluente em outra língua? É bem difícil!
Evidências de que o período crítico exista estão nas histórias de crianças que, por diferentes motivos, cresceram isoladas da sociedade. Um caso clássico é o da menina Genie Wiley que, na década de 1960 (auge desta teoria), viveu aprisionada pelo pai no sótão de sua casa até os 13 anos, sem qualquer interação linguística ou física com outra pessoa. Após ser resgatada pelas autoridades, Genie foi atendida por pesquisadores de diferentes áreas, inclusive linguistas, que tentaram ensinar à menina a gramática do inglês. Mesmo com muito esforço, Genie só conseguiu aprender algumas palavras, sendo incapaz de produzir sentenças estruturalmente aceitas na língua. O mesmo ocorreu quando tentaram ensiná-la a usar a língua de sinais americana.
O caso de Genie deixa claro que a presença do ambiente, ou seja, do input, é necessária ao processo de aquisição, embora não seja suficiente. Como ela não teve acesso a dados da língua, ainda que sua natureza permita adquirir linguagem, a marcação dos parâmetros correspondentes à língua ficou impossibilitada e, consequentemente, o processo de aquisição da linguagem não ocorreu.
Uma vez conhecida a hipótese mais aceita na Linguística para explicar a aquisição da linguagem, vamos a um resumo do Capítulo para, a partir do Capítulo seguinte, iniciar a apresentação do curso da aquisição da linguagem, isto é, os estágios pelos quais as crianças passam para adquirir a linguagem em seus diferentes níveis, do mais simples ao mais complexo.
Em seus primeiros dias de vida, as crianças já demonstram serem sensíveis à fonologia das línguas naturais.
A Fonologia é “o estudo das regras inconscientes que comandam a produção de sons da fala” (ADAMS et al, 2007, p. 21).
A construção do sistema fonológico se dá a partir dos indicativos que a criança encontra na língua do seu ambiente, por meio das informações que são repassadas para ela por um grupo social ao qual ela está inserida. A grande maioria das crianças amadurecem o conhecimento fonológico devido à criação de um sistema condizente com esses repasses (LAMPRECHT et al., 2014).
As crianças têm uma percepção reconhecida pela existência de sensibilidade a propriedades prosódicas de linguagem, baseada em pistas fonéticas, mais especificamente a frequência essencial, a duração e energia, que geram o ritmo e a melodia do desenrolamento da fala (FREITAS; SANTOS, 2017).
Figura 7 – Criança falando
Fonte : Freepik.
Uma vez que as propriedades prosódicas se voltam para uma conexão com outras propriedades linguísticas, ao nível da sílaba, palavra e frase, essa sensibilidade pode ser empregada para a aquisição da linguagem, disponibilizando informações importantes para a descoberta das palavras e de questões voltadas para a estrutura sintática.
A aquisição do sistema fonológico se dá, resumidamente, de forma semelhante em todas as crianças, e em fases que podem ser tratadas iguais. No entanto, concomitantemente, pode-se observar a existência de variações individuais entre elas, como a possibilidade e a dimensão dessas variações serem muito amplas. Assim, dentro de cada fase e características gerais do desenvolvimento fonológico, existe a possibilidade de modificação individual no que se refere ao domínio segmental e prosódico. Essa variação pode ser em termos de (LAMPRECHT et al., 2014):
•Idade de aquisição.
•Caminhos percorridos.
Alguns estudos mostram que bebês com quatro dias de vida são capazes de diferenciar sua língua materna de outras línguas até então desconhecidas por eles, o que é feito apenas com base no ritmo. Se a linguagem fosse adquirida com essa idade, as crianças poderiam adquirir qualquer língua a que fossem expostas. Essa capacidade, no entanto, é perdida com o tempo.
Desde os primeiros dias de vida, as crianças são sensíveis a diversas características sonoras da fala, tendo a capacidade de processar os impulsos linguísticos de uma forma que, a aquisição da linguagem, é iniciada mesmo muito cedo, provavelmente, antes mesmo de nascerem, quando nos referimos aos bebês ouvintes (FREITAS; SANTOS, 2017).
Nos primeiros meses, além de chorar, a criança balbucia. O balbucio consiste na emissão de sons sem significado e que, no início, não necessariamente correspondem aos fonemas da língua à qual a criança é exposta. Trata-se de algo instintivo, feito pela criança para testar as possibilidades de seu trato vocal.
Figura 8 – Bebês nos primeiro meses
Fonte: Freepik .
Com o passar do tempo, os balbucios aumentam e passam a combinar os sons em sílabas. Nessa fase, que ocorre por volta dos seis meses, a combinação de sons não é aleatória, mas segue a estrutura silábica básica da língua – no caso do PB, a estrutura consoante + vogal (CV). Em nenhum momento as crianças tentam produzir sílabas sem vogais, já que ter vogais nas sílabas é uma restrição do português. Do mesmo modo, as crianças não tentam combinações de sons impossíveis.
As primeiras consoantes que aparecem nos dados infantis costumam ser as plosivas ou oclusivas (/b/, /p/, /t/,/d/), depois as nasais (/m/, /n/) e, finalmente, as fricativas (/s/, /z/, /f/, /v/). Por isso, as primeiras produções das crianças brasileiras são, geralmente, “ba-ba-ba”, “ta-ta-ta”.
Um fato curioso é que mesmo crianças surdas balbuciam nessa fase. Isso é uma evidência de que o balbucio não se trata de uma resposta da criança a estímulos externos, mas algo guiado internamente e possível graças à sua competência linguística inata.
No processo de desenvolvimento podem ser observadas muitas mudanças, como explicam os autores:
Por volta dos nove meses, o bebê tona-se sensível à forma típica das palavras, à fonotática (as sequências de fonemas permitidas) e às regularidades distribucionais de sequencias de fonemas da língua em aquisição. Todo esse desenvolvimento na percepção da fala ocorre ainda antes de o bebê produzir as primeiras palavras (FREITAS; SANTOS, 2017, p. 36).
Quando completam 10 meses, as crianças começam a balbuciar apenas os sons que elas escutam em seu input, aplicando às sílabas o padrão entoacional da língua, ou seja, produzem as sílabas tônicas conforme o que é previsto nessa língua. Nesse estágio, começa a haver uma relação, mesmo que primária, entre som e significado. Os bebês começam a prestar atenção à forma prosódica das palavras, à regularidade com que os sons são distribuídos e às restrições. Com base nessas informações, mais tarde, eles conseguem aprender o léxico da língua.
É por volta do primeiro ano de vida que as crianças começam a perder a habilidade de diferenciar línguas estrangeiras da sua. Suas capacidades linguísticas se tornam mais refinadas e elas se preparam para aprender as palavras.
A maioria das crianças começa a produzir palavras em torno de um ano. Apesar disso, elas também continuam balbuciando, podendo utilizar gestos para se comunicar, por exemplo, quando erguem os braços para que as mães as peguem no colo, ou quando apontam para alguma coisa que queiram.
Com um ano e seis meses as crianças já começam a combinar palavras, fazendo uma pausa entre elas. O padrão entoacional que a criança utiliza nessa combinação é, ainda, o padrão de palavras isoladas.
Depois de um curto período, a combinação de palavras feita pela criança passa a ter um único contorno entoacional e a pausa deixa de existir. A partir de então, podemos considerar que as crianças estão produzindo enunciados que, mesmo curtos, equivalem a sentenças completas, com significado específico.
É válido mencionar que, ao longo desse processo, a linguagem que as mães utilizam ao falarem com os filhos – o chamado “maternês” – apesar de explicar a aquisição, facilita o contato da criança com os aspectos fonológicos da língua. Sendo uma fala bastante pausada, com entonação enfática, a criança pode observar atentamente os padrões silábicos, a sílaba tônica e cada som em particular.
Figura 9 – Mãe com o filho
Fonte: Pixabay .
Uma vez apresentada a sequência com que os aspectos fonológicos aparecem no curso da aquisição da linguagem, podemos resumir essas informações por meio do Quadro 1.
Quadro 1 – Aquisição dos aspectos fonológicos da língua
Fonte: Adaptado de Grolla e Silva (2014).
No entanto, Lamprecht et al. (2014) explica que não é sempre que a criança demonstra todo o seu conhecimento e capacidade de produzir a fala. Isso porque podem existir situações nas quais as crianças saibam mais do que seus interlocutores possam imaginar, ou seja, do que as pessoas com que ela interage possam perceber.
Existem casos em que há a representação implícita na mente da criança e que ela não evidencia na fala. A produção possibilita evidências valiosas do conhecimento que ela tem e que, mesmo não sendo ainda utilizado, oferece sinais do potencial de crescimento da criança.
Antes dos dois anos as crianças já conseguem compreender as consoantes plosivas e nasais (KLUNK, 2018):
•Plosivas – primeiramente, aquelas que envolvem os movimentos dos lábios, chamadas de “labiais”. Em seguida, as chamadas “coronais”, que envolve o movimento da corona da língua, para, por fim, adquirir as dorsais, que envolvem o movimento do dorso da língua.
•Nasais – ocorrem, primeiramente, as labiais e coronais, para depois ocorrerem as dorsais.
Agora, vamos tratar sobre o conhecimento que a criança tem da morfologia da língua.
É por volta de um ano que as crianças começam a produzir as primeiras palavras, unidades pertencentes ao nível morfológico da linguagem.
Embora tenhamos tendência, intuitivamente, de relacionar a quantidade de palavras que uma criança sabe falar à sua esperteza, é preciso tomar muito cuidado. O que a criança faz ao adquirir a morfologia de sua língua não se resume a decorar uma lista de palavras, mas em compreender os diferentes usos que estas podem ter, sua relação com outras palavras e as regras que podem ser aplicadas a elas.
As primeiras palavras que aparecem no vocabulário infantil têm a função de nomear objetos e seres que estão frequentemente presentes no cotidiano da criança, como brinquedos, o cachorro, a mamãe e o papai. São, portanto, morfemas lexicais, especificamente, substantivos.
A maioria dessas palavras é utilizada com valor de uma sentença completa. São, por isso, chamadas de “holófrases”. Como exemplo, podemos citar enunciados como “papá”, que a mãe, facilmente, compreende como “Eu quero mais papá (comida)”.
Ao completar dois anos, a criança já apresenta um vocabulário de, aproximadamente, 400 palavras, o que a possibilita produzir sentenças com mais de dois vocábulos. Ainda produzindo apenas morfemas lexicais, os verbos começam a aparecer e a serem combinados com substantivos, como em “qué papá”. Já os morfemas gramaticais, como artigos, pronomes, preposições e conjunções, não são usados, já que os enunciados ainda são muito simples.
Figura 10 – Crianças de dois anos
Fonte: Pixabay .
Entre dois e três anos, os artigos e os pronomes começam a fazer parte do vocabulário infantil, que já conta com, aproximadamente, 900 palavras. É nesse período que aparece o fenômeno da regularização dos verbos irregulares, como “fazi” e “trazi”. Na perspectiva da hipótese inatista, esse fenômeno evidencia que, nessa idade, as crianças já têm conhecimento de como é formado o passado de verbos regulares terminados em –er (no caso específico desses exemplos), sabendo aplicá-lo a quaisquer verbos terminados em –er.
Isso ocorre porque a criança consegue detectar uma regularidade no input, já que verbos terminados em –er cujo passado em primeira pessoa é formado pelo morfema –i aparecem com frequência na língua. Assim, o que a criança produz não é arbitrário, e sim regido por uma regra da língua. O que ela aprenderá em outro momento do processo é que verbos como “fazer” e “trazer” têm uma estrutura irregular e que, para formar o passado, a regra dos verbos regulares não pode ser aplicada. Como esses verbos ocorrem em menor quantidade na língua, eles são aprendidos um a um.
Entre três e três anos e meio, o vocabulário infantil alcança um total de 1.200 palavras, continuando a aquisição de morfemas gramaticais. É entre três anos e meio e quatro anos que as crianças começam a fazer uso desses morfemas para formarem sentenças mais complexas, contendo mais de uma oração. Quando se aproximam dos cinco anos, a quantidade de palavras aumenta ainda mais, chegando em torno de 1.900. Aos cinco anos, quando a criança já adquiriu, praticamente, todas as estruturas da língua, o domínio de morfemas lexicais e gramaticais se torna perfeito.
No Quadro 2, resumimos os aspectos morfológicos adquiridos pela criança em cada estágio da aquisição.
Quadro 2 – Aquisição dos aspectos morfológicos da língua
Fonte: Adaptado de Grolla e Silva (2014).
Diferenciar os aspectos morfológicos dos sintáticos é algo extremamente difícil, uma vez que as palavras e a estrutura da sentença estão diretamente relacionadas.
Desde muito cedo, na fase das primeiras palavras, a criança demonstra que tem conhecimento acerca da estrutura das sentenças em sua língua. Conforme ela avança no processo de aquisição da linguagem, também é possível observar seu conhecimento de restrições sintáticas impostas pela gramática da língua, até que, em torno dos cinco anos, ela se mostra capaz de produzir construções com estruturas bastante complexas, atribuindo a elas uma interpretação adulta, além de saber colocá-las em uso, analisando os contextos de fala.
Esses conhecimentos são considerados refinados e evidenciam a capacidade que a criança tem de lidar com a complexidade da língua.
Neste Capítulo, pretendemos tratar sobre fenômenos sintáticos que são observados no curso da aquisição da linguagem, atentando para o estágio provável em que esses fenômenos ocorrem e mencionando, ainda, aspectos sintáticos e pragmáticos.
A aquisição da sintaxe é bem demonstrada a partir do momento em que a criança começa a realizar a combinação de duas ou mais palavras em enunciados aos quais se pode obter um sentido (FREITAS; SANTOS, 2017).
Desde muito cedo, a criança demonstra conhecimento acerca da estrutura das sentenças em sua língua. Algo no qual as crianças se baseiam para aprender uma série de operações sintáticas é a ordem das palavras. Antes mesmo de começarem a combinar palavras, com um ano e seis meses, elas detectam a ordem das palavras e utilizam esse conhecimento para compreender os enunciados que ouvem.
Figura 11 – Criança nas suas primeiras fases
Fonte: Pixabay .
Assim, ao ouvirem uma frase como “O papai abraçou a mamãe”, elas já sabem perfeitamente quem realizou a ação e quem foi abraçado.
Ao pensar na aquisição da sintaxe, podemos, então, considerar o curso natural pelo qual passam crianças na aquisição de qualquer língua humana, em função de um programa biológico, que possibilita a combinação de unidades de um léxico em estruturas nas quais esses elementos se relacionam de forma hierárquica (FREITAS; SANTOS, 2017, p. 121).
Quando a criança combina duas palavras, sem pausa entre elas, consideramos que ela está produzindo sentenças completas. Essa combinação é regida por regras de ordem estrutural e semântica, de modo que as sentenças podem conter, por exemplo:
•O agente e o verbo (“mamãe pega”).
•O verbo e o complemento (“qué papá”).
•O agente e o complemento do verbo, que não aparece (“papai” “mamãe”).
•O verbo e um lugar (“põe sofá”).
Independentemente da língua que está sendo adquirida, as crianças raramente erram essa ordem. Quando isso acontece, é devido a questões extralinguísticas, como interrupções ou esquecimento – ou, em casos mais severos, problemas de competência linguística, tais como distúrbios da linguagem oral.
Ainda com dois anos, as crianças já produzem perguntas simples, que vão se tornando refinadas conforme avançam nos estágios da aquisição. O modo como as perguntas são feitas segue igualmente a ordem canônica da língua, bem como restrições gramaticais.
A criança começa a proferir expressões de duas palavras, manifestando as primeiras relações sintáticas e semânticas, ainda que as marcas morfológicas e sintáticas não sejam expressas claramente, pois, normalmente, não há flexão de número e pessoa, e os pronomes são raros (MASCARELLO, 2010, p. 154 ).
Com mais de três anos, as crianças estão adquirindo os morfemas gramaticais – artigos, pronomes, preposições e conjunções –, então, começam a produzir sentenças contendo mais de uma oração.
As primeiras sentenças complexas que aparecem nos dados infantis são compostas por coordenação, cujas relações estabelecidas entre as orações são mais simples, como “Eu comi banana e (comi) maçã”.
Em seguida, aparecem as chamadas sentenças clivadas, formadas por construções “É...”, como “É o papai que vai me dar banho”. Por meio destas, as crianças conseguem derivar orações relativas, como “a boneca que a mamãe deu”, embora estudos de diferentes línguas mostrem que algumas relativas sejam bastante complexas para as crianças, levando-as a utilizarem estratégias para minimizar seu custo de processamento.
As subordinadas mais complexas, como aquelas que envolvem relações temporais estabelecidas por “quando” e “enquanto”, são adquiridas um pouco mais tarde, entre quatro e cinco anos.
Depois dessa idade, as crianças são consideradas conhecedoras de praticamente todas as construções da língua. Entretanto, há algumas construções que aparecem raramente nas produções infantis por estarem pouco presentes no input, ocorrendo com maior frequência em contextos de língua escrita. É o caso das passivas.
Figura 12 – Criança lendo
Fonte: Pixabay .
É importante destacar que durante todo o processo de aquisição da sintaxe a criança não decora as sentenças possíveis de sua língua, afinal, a memória do ser humano não tem tamanha capacidade. Uma vez aprendidas as regras simples para a formação de sentenças – evidentemente, com base na ordem das palavras –, as crianças são capazes de utilizá-las para gerar novas sentenças. Essa capacidade é conhecida como “recursividade”. Por meio dela, as crianças utilizam os recursos finitos do input para produzirem um número infinito de sentenças.
A Figura 13 ilustra o funcionamento da recursividade.
Figura 13 – Recursividade
Fonte: Elaborada pela autora (2021).
A aquisição de aspectos semânticos não é tão simples quanto parece, pois o ambiente influencia diretamente na sua compreensão.
A preocupação da Semântica é com o significado e o sentido, considerando a comunicação, pois sem esta não existe sentença (MACEDO, 2013).
Diante disso, é importante compreender o que Silva e Britto (2013) explicam sobre a aquisição de aspectos semânticos:
A Semântica é o revestimento intelectual e racional da linguagem. É a responsável pela compreensão do valor das coisas do mundo. Depende muito mais do enunciatário/interlocutor que do enunciador/locutor. A Semântica é a grande responsável pelo entendimento e o desentendimento entre as pessoas. É também a responsável pela expansão da língua por meio do recurso da polissemia. Esta é a atribuição de muitos sentidos a uma só palavra. O sentido diferente apresentado pela mesma palavra depende do contexto em que ela é empregada (SILVA; BRITTO, 2013, on-line).
Não são apenas os sentidos das palavras que são estudados pela Semântica, mas também os enunciados. Desse modo, compreender a Semântica é essencial para que os sentidos e significados que as palavras e expressões podem assumir no contexto também sejam compreendidos.
Quando tratamos da aquisição dos aspectos semânticos, devemos entender como são adquiridos os significados das palavras pelas crianças.
É possível entender como ocorre o processo de aumento do vocabulário pelas crianças, em que ritmo isso acontece, bem como os fatos que caracterizam o emprego das palavras no decorrer do desenvolvimento lexical.
As aquisições semânticas da linguagem, consoante Silva e Britto (2013, on-line) dependem de alguns aspectos, como:
•Grau de experiências.
•Organização interna do mundo ao redor.
Figura 14 – Aquisições semânticas
Fonte: Elaborada pela autora (2021).
A Semântica se faz presente na linguagem das crianças desde que elas começam a atrelar sons a significados. Conforme avançam no processo de aquisição da língua, são capazes de atribuir a palavras isoladas o valor de uma sentença completa. Um pouco mais tarde, quando passam a combinar palavras para formar sentenças, além de informações estruturais, elas têm de levar em conta as relações semânticas que estabelecem entre si. O mesmo se dá quando chegam à fase de combinar orações para formar sentenças mais complexas e ancorá-las em um determinado tempo/espaço de fala.
Também está relacionada aos aspectos semânticos a capacidade que as crianças têm de compreender e interpretar sentenças de sua língua mesmo antes de produzir as mais complexas. Desde bebês, elas conseguem estabelecer os papéis semânticos dos participantes da sentença – isto é, sabem quem realizou a ação e quem sofreu –, quando mais velhas acessam, inclusive, diferentes interpretações em uma sentença ambígua.
Os aspectos pragmáticos, por sua vez, relacionam o conhecimento que a criança tem da linguagem ao contexto de fala.
A Pragmática estuda os usos situados na língua e trata de determinados tipos de efeitos intencionais, sendo seu objeto de estudo o uso das palavras e das sentenças inseridas em determinado contexto (CANÇADO, 2008).
De acordo com Ferrari (2011, p. 16), “as relações do significado com o mundo são vinculadas ao domínio da Pragmática, que, na visão formalista, é externo ao domínio da linguagem propriamente dita”.
A criança consegue compreender quando o pai está lhe dando uma bronca ou uma ordem, além de ser capaz de inferir outras informações a partir do que é dito. Com o passar do tempo, ela também se torna capaz de moldar sua linguagem conforme o interlocutor e o contexto.
Sem o conhecimento da Pragmática a criança não entenderia o que o falante queria dizer se não compreendesse também qual era a intenção dele ao falar aquela expressão para determinada pessoa em dado contexto, explica Cançado (2008).
De acordo com Martins e Gomes (2016), a análise pragmática deve levar em consideração:
•Aspectos estruturais da língua.
•Aspectos relacionados com a criança, ou seja, a sua vivência.
Figura 15 – Análise pragmática
Fonte: Elaborada pela autora (2021).
Os autores abordam em seu estudo os recursos linguísticos na pragmática utilizados por crianças como forma de demonstrar a sua intenção por meio da fala.
São utilizados recursos como:
•Repetição – utilizando reiteradamente uma palavra como forma de persuadir.
EXEMPLO:
O uso contínuo da palavra não:
Filho: ― ão, aão, não, não.
Mãe: ― Tem que comer o legume.
Filho: ― ão, Não, nanão.
Mãe: ― Então não vai brincar.
Filho: ― Nã, não, não.
•Diminutivo – que pode ter sentido tanto intensificador como afetivo ou, até mesmo, desprezivo. As crianças, muitas vezes, usam como forma de demonstrar afeto ou algo que é pequeno.
EXEMPLO:
Mostrar algo ou pedir algo.
Filho: ― O cachorrinho mamãe.
Filho: ― Coloca o “papatinho”.
Filho: ― Qé o ursinho.
•Imperativo – utilizado como forma de mandar, persuadir. Muitas vezes, as crianças usam palavras para mandar os pais fazerem algo, pois, para eles, é o mesmo que pedir.
EXEMPLO:
Mandar que seja trazido algo
Filho: ― Traz a água.
Filho: ― Coloca o desenho.
Filho: ― Leva no parquinho.
É por meio do meio em que a criança está inserida que ela desenvolve aspectos semânticos e pragmáticos, visto que é possível ela compreender o que está sendo repassado, sendo corrigida ao errar. Por isso a interação comunicativa com a família é essencial
Quando a criança combina duas palavras sem pausa entre elas, consideramos que ela está produzindo sentenças completas. Essa combinação é regida por regras de ordem estrutural e semântica.
Ainda com dois anos, as crianças já produzem perguntas simples, que vão se tornando refinadas conforme avançam nos estágios da aquisição. Com mais de três anos, as crianças começam a produzir sentenças contendo mais de uma oração. As primeiras sentenças complexas que aparecem nos dados infantis são coordenadas, seguidas de clivadas e orações relativas. As subordinadas mais complexas são adquiridas um pouco mais tarde. Para formá-las, as crianças têm de considerar as relações semânticas entre as orações. Aos cinco anos, as crianças são consideradas conhecedoras de, praticamente, todas as construções da língua.
Por meio da recursividade, as crianças utilizam os recursos finitos do input para produzirem um número infinito de sentenças.
A capacidade que as crianças precisam compreender e interpretar sentenças de sua língua é verificada muito cedo. Desde bebês, elas conseguem estabelecer os papéis semânticos dos participantes da sentença e, mais tarde, acessam diferentes interpretações em uma sentença ambígua.
Os aspectos pragmáticos relacionam o conhecimento que a criança tem da linguagem ao contexto de fala. A criança é capaz de inferir informações e, com o passar do tempo, também se torna capaz de moldar sua linguagem conforme o interlocutor e o contexto.
Como será que alguns dos fenômenos linguísticos por nós mencionados se manifestam em crianças com algum distúrbio de ordem linguística? Será que elas adquirem a linguagem da mesma forma que as outras? Quais dificuldades elas apresentam e como fazem para lidar com isso?
Os distúrbios de ordem linguística são desordens que ocorrem na realização da comunicação, ou seja, da fala. Elas podem se originar devido a diversos motivos, podendo ser manifestadas não apenas no início da compreensão da linguagem da criança, mas também depois de adulto.
Figura 16 – Distúrbios de linguagem oral
Fonte: Elaborada pela autora (2021).
Os transtornos que mais predominam nas crianças são os distúrbios da comunicação, ocorrendo com frequência os distúrbios de linguagem. Em média, de 3 a 10% das crianças até seis anos têm um tipo de dificuldade no desenvolvimento da fala ou da linguagem, prevalecendo em maior número o sexo masculino (CESAR; LIMA, 2021).
Conforme Prates e Martins (2011), alguns distúrbios podem ser identificados quando a criança ainda é pequena, por meio de:
•Falta de reação quando chamada pelo nome.
•Televisão com volume muito alto.
•Falta de compreensão na fala.
•Dificuldade de interação.
•Agressividade.
Perceber o comportamento da criança é essencial para que seja possível observar os sinais e conseguir minimizar esses distúrbios ou, até mesmo, evita-los através de ações simples de estimulação da linguagem.
Alguns autores classificam os distúrbios de ordem linguística em famílias de distúrbios de comunicação, como Furnham (2015), que traz a afasia como uma dessas classificações.
Os termos “afasia” ou “disfasia” do desenvolvimento eram utilizados para fazer referência ao distúrbio que afeta diferentes aspectos do desempenho e desenvolvimento linguístico. Estudos sugerem que crianças com esse distúrbio podem ter um funcionamento anormal da área cerebral responsável pelo processamento linguístico, de modo que o cérebro delas parece não ser apto para aprender e processar a linguagem. Esse funcionamento anormal não pode ser detectado em exames como tomografia computadorizada ou ressonância magnética.
Figura 17 – Afasia
Fonte: Freepik .
Para Furnham (2015, p. 276) a afasia trata-se de um “distúrbio da fala (produção de linguagem), geralmente, causado por lesões corticais. O problema pode revelar-se como uma incapacidade de usar ou produzir a fala com clareza ou precisão ou de entender o que os outros dizem”.
Algumas ações que podem ser observadas com a afasia são as seguintes:
•Não conseguir completar frases que estão falando porque não conseguem lembrar as palavras adequadas que concluam o pensamento.
•Ter respostas irrelevantes para determinadas perguntas ou, até mesmo, inventar palavras.
No entanto, podem ser observados diversos outros distúrbios de linguagem e fala. Estes irão se diferenciar em termos funcionais, ambientas, psicossomáticas, entre outros.
Prates e Martins (2011) citam como principais distúrbios de fala e linguagem:
•Transtorno fonológico – quando acontece um retardamento na aquisição fonológica da língua (fonemas) ou a aquisição não ocorre na trajetória que deveria.
•Gagueira de desenvolvimento – ocorrência de interrupções na fala, como sons e sílabas repetidas, entraves e prolongação.
•Alteração no desenvolvimento da linguagem oral – pode estar na forma de se expressar ou de receber a linguagem, e envolve pobreza de vocabulário, problema na compreensão, problema na linguagem, estruturação sintática rasa, modificações gramaticais etc.
•Alteração no desenvolvimento da linguagem escrita – que pode ter relação com a alteração no desenvolvimento da linguagem oral.
Por isso, é importante observar a presença de distúrbios da linguagem escrita para que seja analisada se ela é resultante de um distúrbio relacionado com a fala, visto que existem casos em que uma influencia a outra.
Figura 18 – Principais distúrbios da fala e da linguagem
Fonte: Prates e Martins (2011).
O transtorno fonológico, para Cesar e Lima (2021), se trata de um distúrbio dos sons da fala de origem funcional, e não tem uma causa definida, sendo identificado pela dificuldade apresentada no emprego das regras fonológicas e dos fonemas. Assim, a criança passa a fazer trocas, omitir, inserir ou reordená-los. O uso inapropriado dessas regras faz com que a fala fique prejudicada, tornando-a ininteligível, o que pode variar de um grau leve até um severo.
Como explica Goulart e Chiari (2014):
O distúrbio fonológico constitui uma alteração de fala caracterizada pela produção inadequada dos sons e pelo uso inadequado das regras fonológicas da língua com relação à distribuição do som e ao tipo de sílaba, resultando em colapso de contrastes fonêmicos, afetando o significado da mensagem (GOULART; CHIARI, 2014, p. 810).
Também é preciso compreender que existe a apraxia de fala que acomete as crianças. Ela corresponde a um transtorno neuromotor que atinge o cérebro no momento do envio das informações para a boca, língua, voz e os lábios. Assim, quando a criança realiza os movimentos para falar, ela não consegue, pois se perde, ou seja, ela sabe o que quer falar, porém os movimentos não saem corretamente.
Atualmente, quando tratamos do distúrbio da linguagem, também devemos nos atentar ao déficit específico da linguagem (DEL). Esse distúrbio atinge, exclusivamente, a linguagem oral, ou seja, está relacionado à fala e à gramática da língua, mas pode causar reflexos na aprendizagem da escrita. Ele se manifesta em diferentes graus, tanto na produção como na compreensão da linguagem, podendo atingir os diferentes níveis linguísticos.
Uma criança é diagnosticada com distúrbio específico da linguagem oral quando ela tem, aparentemente, todas as condições físicas necessárias para falar, mas não adquire a linguagem, ou adquire com atraso. São excluídos problemas de outra ordem, como déficits cognitivos, surdez, falta de estímulos ou transtornos globais do desenvolvimento (como o autismo), que podem estar relacionados ao comprometimento linguístico, mas não estão particularmente relacionados à linguagem. O problema com esse diagnóstico é que ele não garante que apenas o domínio linguístico seja afetado.
Figura 19 – DEL
Fonte: Elaborada pela autora (2021).
Como bem explica Passos, Costa e Salgado (2010):
O DEL é uma síndrome caracterizada por um comprometimento linguístico que atinge crianças no período de desenvolvimento da língua. Crianças caracterizadas como portadoras do DEL não têm distúrbios neurológicos, deficiências auditivas ou sofrem privação do meio social, por isso o déficit é, na maioria das vezes, determinado por um critério de exclusão. Na ausência de problemas externos ao domínio da linguagem que possam explicar os distúrbios apresentados, a criança é diagnosticada como portadora de DEL (PASSOS; COSTA; SALGADO, 2010, p. 43).
Assim, os distúrbios da fala não acontecem em conexão com deficiências aditivas, mentais etc., eles podem ser evidenciados devido a influências externas, por exemplo, no caso de a instrução da criança ter sido realizada de forma ineficiente ou inadequada ou, até mesmo, ser proveniente de causas hereditárias.
Para os autores, existem algumas hipóteses principais sobre o déficit específico da linguagem, quais sejam:
•Com déficit de processamento – caracterizada pela conciliação entre duas dificuldades, que são a de percepção e a gramatical.
•Com déficit no mecanismo linguístico – quando a dificuldade está associada a operações gramaticais, semânticas e fonológicas.
O comportamento linguístico da criança que tem esse distúrbio depende do grau do déficit e do nível linguístico afetado. Em distúrbios de ordem sintática, por exemplo, é comum observar o uso recorrente de estruturas simplificadas, a fim de minimizar o custo de processamento imposto pelas estruturas complexas da língua. Há, porém, casos em que a produção linguística é altamente refinada, porém as frases não possuem qualquer sentido.
As dificuldades impostas pelos distúrbios da linguagem podem ser intensificadas, permanecendo até a fase adulta, principalmente em casos severos. O tratamento é, geralmente, fonoaudiológico e, se feito da maneira adequada, pode diminuir os sintomas ao longo do tempo.
Os distúrbios de linguagem oral podem ser manifestados em alguns níveis linguísticos, como de ordem fonológica, morfológica, lexical, sintática, semântica e pragmática.
Figura 20 – Distúrbios de linguagem oral em níveis linguísticos
Fonte: Elaborada pela autora (2021).
Veja algumas características dos distúrbios de linguagem oral manifestadas em cada nível linguístico e como identificá-las:
Distúrbio de ordem fonológica
A criança que apresenta esse distúrbio tende a:
•Ter dificuldade em adquirir os sons da língua.
•Trocar os sons.
Distúrbio de ordem morfológica
Nesse distúrbio, a criança:
•Apresenta dificuldade com a estrutura argumental dos verbos.
•Tem dificuldade de adquirir os morfemas gramaticais.
•Não realiza flexão verbal e nominal da maneira prevista na língua.
Distúrbio de ordem lexical
A criança com esse distúrbio tem carência vocabular, devido à dificuldade de aprender palavras novas.
Distúrbio de ordem sintática
Quando há distúrbio de ordem sintática, a criança:
•Apresenta dificuldade em combinar palavras para formar as sentenças.
•Não consegue ordenar as palavras na sentença, conforme o que é previsto na língua (em outras palavras, produzem frases com ordem invertida).
•Tem problemas para processar sentenças com estrutura complexa.
Distúrbio de ordem semântica
A criança com esse distúrbio não consegue acessar todas as interpretações possíveis em sentenças ambíguas, o que as impossibilita de compreender piadas, por exemplo.
Distúrbio de ordem pragmática
O comportamento linguístico da criança que apresenta problemas no nível pragmático é marcado por:
•Hesitações.
•Repetições (característica semelhante à gagueira).
•Dificuldade em fazer relatos.
•Dificuldade em fazer inferências e julgamentos sobre o que lhe é dito.
•Problemas para adequar as formas linguísticas ao seu contexto de uso específico.
Esses distúrbios podem gerar resultados que são difíceis de serem mensurados, por isso, é preciso entendê-los e saber identificá-los com antecedência, observando os sinais que cada um deles representa, para que assim não interfira tanto na ambiente que rodeia a criança, bem como na sua aprendizagem formal e informal.
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