Você já ouviu falar da Estética antes? O que é, afinal, a Estética? Uma das primeiras lembranças que deve vir à sua mente é a de que ela deve estar de algum modo ligada à ideia de beleza. Isso não está errado, pois a Estética se preocupa com a categoria do belo. Mas não no sentido que a beleza tem hoje para nós, envolvendo todas as técnicas de embelezamento procuradas pelas pessoas nos salões de beleza e nos tratamentos estéticos. A beleza com a qual a Estética está preocupada é de outra ordem. Ela diz respeito ao modo como contemplamos a beleza da natureza, a beleza de uma obra de arte ou mesmo a beleza do corpo humano, em suas proporções perfeitas.
Mas não é só da beleza que a Estética trata. Afinal, não é somente beleza que a arte e a natureza nos apresentam. Muitas vezes, quando contemplamos um objeto artístico ou um evento natural, sentimos medo, horror e muitos outros sentimentos de arrebatamento.
Figura 1 – “Judith e Holofernes” de Caravaggio, 1599
Fonte: Wikimedia Commons
Vejamos, por exemplo, o quadro do pintor barroco italiano Caravaggio, no qual vemos Holofernes ser assassinado por Judith, mostrando o sangue que esguicha de seu pescoço, assim como a expressão de horror e medo de Holofernes.
A Estética pensa também a categoria de “sublime” para tentar compreender esses outros sentimentos que nos causam horror e arrebatamento ao mesmo tempo.
A filósofa Anne Cauquelin (2005) aponta que o termo “estética” pode ser aplicado tanto como substantivo quanto como adjetivo, e explica as diferenças dessas aplicações:
Empregado como adjetivo, por exemplo, ‘estética’ qualifica comportamentos que parecem ter alguma coisa em comum com os atributos conferidos à atividade artística: a harmonia, a gratuidade, o prazer, o desprendimento: uma atitude, um gesto estético podem ser considerados obra de arte. (CAUQUELIN, 2005, p. 13)
Por outro lado, continua a autora:
O substantivo ‘estética’, entretanto, remete a um corpus teórico constituído de textos que definem o domínio específico da arte, propõem análises, avaliam obras. No conjunto, a estética pode ser considerada uma disciplina ou matéria de estudos. (CAUQUELIN, 2005, p. 13)
De certo modo, podemos pensar, então, que quando qualificamos algo como sendo “estético”, inserimos esse objeto no interior de um campo teórico que pensa a arte. Isso torna o campo da arte em algo maleável, cambiável e frágil, sempre a se renovar, mas a própria história da arte já nos mostra isso, com todas as transformações da produção artística ao longo do tempo.
Figura 2 – “Fonte” de Marcel Duchamp, 1917
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É claro que a Estética também é afetada pela arte. Afinal, não se trata de uma via de mão única, mas, de forma geral, podemos afirmar que ela é esse corpus teórico que modela o campo da arte. Assim como a arte muda em cada contexto, o pensamento que se debruça sobre ela também se transforma.
Podemos afirmar que a Estética como a conhecemos hoje, como pensamento da arte em sua autonomia, só surgiu no século XVIII, com o filósofo alemão Alexander Baumgarten. Mas antes disso, desde a Grécia Antiga, sempre houve discussões sobre a arte e o belo. De modo geral, podemos afirmar que esse pensamento anterior pode ser compreendido com um conjunto de “teorias da arte”. Apesar de serem anteriores ao surgimento da Estética, há uma importância em estudá-los para que compreendamos as enormes transformações sofridas no campo da arte e de seu pensamento com o surgimento da Estética. Veremos, assim, as principais teorias desenvolvidas ao longo do tempo, desde a Grécia Antiga até os dias atuais.
A Estética, assim como as teorias da arte que a precederam, não surge como um campo separado de todos os outros, mas sim no interior de outra disciplina mais ampla: a Filosofia, que foi fundada na Grécia Antiga, por filósofos como Platão, Sócrates e Aristóteles, entre outros.
Para Platão, porém, não se tratava de pensar uma teoria da arte como um campo separado aos quais os filósofos deveriam se dedicar. Suas citações à arte aparecem apenas como breves relatos no interior de seu pensamento mais amplo sobre as formas de viver em comunidade. Em seu livro “A República”, o autor pensa como organizar a vida comunitária sem que o destino de todos fique entregue aos interesses individuais. A palavra de ordem que direciona sua reflexão é a justiça. Como viver de modo mais justo? O que é a justiça? São algumas das perguntas colocadas pelo filósofo em seu livro.
Figura 3 – Mosaico “A Academia de Platão” em Pompéia, do século I
Fonte: Wikimedia Commons
No interior de sua preocupação com a justiça, Platão cita a arte com o intuito de pensar qual seria a mais propícia a educar os cidadãos de Atenas de maneira mais justa. Qual das artes, entre a música, o teatro e a poesia, expressariam um maior sentido de justiça? A justiça, para Platão, está diretamente ligada a maior capacidade de alcançar e acessar a verdade, protegendo-se das ilusões.
Essa é a dimensão de verdade para Platão e é a partir dela que ele irá pensar e julgar a utilidade ou não das diferentes artes para a criação de uma comunidade mais justa. Para Platão, os poetas nada mais fazem que imitações. Eles imitam os tipos sociais. Assim, como imitam todo tipo de pessoas e contam todo tipo de histórias, há que se pensar qual a função dessas histórias e personagens no interior da comunidade. Serão eles exemplos de bons homens? De homens justos? Ainda, de homens conhecedores da verdade? Ou serão apenas homens iludidos pelas sombras da caverna?
Como não se pode controlar àqueles a quem os poetas resolvem imitar em suas histórias, os poetas devem ser expulsos da cidade. Essa é a decisão a que chega Platão. Afinal, só servem à República aqueles que conhecem a verdade, e a poesia só pode ser útil, nesse sentido, se imitar a vida desses homens sem ilusão.
Para Platão, a arte tem um papel muito específico dentro da comunidade. Ela deve servir como um exemplo moral que terá um caráter educativo para a população. Se podemos extrair dessas pequenas citações à arte algumas teorias dela, podemos afirmar que, para Platão, a arte não existe por si só, não existe como instância separada do restante da vida na sociedade. Ela é julgada, não por princípios ou regras próprias a seu campo, mas sim no interior de um interesse maior, o da comunidade e da justiça. A arte, assim, para Platão, deve representar os valores que se considera verdadeiros para a sociedade.
Aristóteles, como dissemos, foi discípulo de Platão, mas seu pensamento foi muito além na criação de uma teoria da arte. O autor chegou a dedicar um livro inteiro para a discussão da arte, chamado de “Poética”. Lá, o autor dedica-se a pensar a poesia e a delimitar aquilo se compreende por esse nome.
O autor discorre sobre os diversos tipos de escrita que se manifestam em sua época. Assim, há a epopeia, que é um tipo de poema trágico, mas há também a arte da música, na qual se toca a flauta, a cítara e os cantos que as acompanham. Ela é aí considerada, pois as letras compostas para as canções não deixam de ser também poesia. Há ainda, diz Aristóteles, uma diversidade de exercícios da escrita que não possuem nome: farsas em prosas, os diálogos e a própria poesia que se chama de épica ou elegíaca, apenas segundo uma regra métrica.
Mas, de todas essas formas da escrita, Aristóteles destaca duas: a comédia e a tragédia. As quais irá analisar segundo suas formas diversas de fazer imitações, pois, para o autor, a arte também faz imitações. “Tragédia e comédia; esta procura imitar os homens inferiores ao que realmente são, e aquela, superiores” (ARISTÓTELES, 2004, p. 39).
Aristóteles afirma que ambas as formas da poesia, tanto a tragédia quanto a comédia, podem ser consideradas dramas, pois, apesar de suas diferenças, elas imitam pessoas em ação. Os dramas nada mais são do que imitações de homens em ação, sendo que o desenrolar da história é o encadeamento das ações dos personagens.
Mas, para o autor, a mais nobre das artes imitativas é a tragédia, pois ela é a representação de ações elevadas e de homens superiores.
Como a tragédia é a imitação de uma ação, realizada pela ação dos personagens, os quais se diferenciam pelo caráter [...], segue-se que são duas as causas naturais das ações: ideias e caráter. E dessas ações se origina a boa ou má fortuna das pessoas. (ARISTÓTELES, 2005, p. 43)
Se, para Platão, a arte imitava os tipos sociais, para Aristóteles, trata-se de imitar as ações dos homens. É claro que as ações devem estar de acordo com o caráter de cada personagem, expressando, assim, um tipo social, mas o enfoque está no encadeamento das ações, pois o interesse de Aristóteles é pensar uma teoria da arte ou da poesia e não simplesmente como a arte opera no interior da República. Por isso, há a necessidade de pensar o modo como se constrói uma história, partindo de certos tipos sociais para encadear uma série de ações que mostrarão uma moral da história.
Há, em Aristóteles, a ideia de que cada elemento no interior da poesia deve dialogar diretamente com todos os outros, sendo uma ideia de totalidade da obra. Assim, o caráter do personagem deve ser o próprio motivo da reviravolta da história. Suas ações devem exprimir suas ideias e seu caráter. Tudo isso deve ser pensado de acordo com o tipo de história e com o tipo de escrita: comédia ou tragédia.
O autor fala, ainda, sobre como tudo na história deve ser necessário e verossímil.
A exigência da verossimilhança para a poesia mostra como o autor não concebe nenhum tipo de desvio ou de acontecimento inesperado. Isso não significa dizer que as histórias não possuem reviravoltas, inclusive, ele até diz que ela é necessária para uma boa história, mas a virada de jogo deve obedecer às regras internas de coerência entre o personagem, seu caráter, o tipo de história e os meios de contá-la.
Figura 4 – “Aquiles fere Heitor” de Peter Paul Rubens, 1635 (retrato de cena da “Ilíada” de Homero)
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A teoria da arte de Aristóteles influenciou todo o pensamento da arte que veio depois, fundamentando as discussões criadas ao longo de toda a Idade Média e, ainda, o começo da Idade Moderna. Nesse período longo, praticamente toda a discussão em torno da arte pode ser pensada como teorias preocupadas em criar regras para o fazer artístico e para a apreciação da arte. É claro que essas teorias foram ampliadas por cada autor que se dedicou a ela e foi sofrendo modificações, mas o modo de pensar a arte em sua dependência, ora em relação à moral, ora em relação à religião, ora em relação à política, prevaleceu por todo esse período. Até meados do século XVIII, a arte permaneceu sendo pensada como estando em função de algo externo a ela própria. Veremos como isso irá mudar, operando uma verdadeira revolução no modo de pensar a arte.
Até meados do século XVIII, o que existia, de fato, não podia ser considerado uma estética, mas sim um conjunto de teorias da arte interessadas, em geral, em criar regras e prescrições para o fazer artístico e para a apreciação da arte. Mas isso tudo muda com o nascimento da Estética como disciplina. E isso aconteceu com o livro chamado “Estética: a lógica da arte e do poema”, escrito pelo filósofo alemão Alexandre Gotlieb Baumgarten. Vamos estudá-lo para compreender como nasceu a Estética e as implicações dela para a arte?
Figura 5 – Primeira capa do livro de Baumgarten, quando de sua publicação em 1750
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Em 1750, Baumgarten publica seu livro “Estética” e, sem saber, muda toda a concepção da arte e do pensamento da arte daí em diante.
Quando Baumgarten nomeou seu livro, ele tinha, provavelmente, o intuito de trazer à tona esse significado grego. Afinal, o livro faz parte de um projeto maior de pensamento do autor que intuía pensar o modo como nos relacionamos com o mundo e o conhecemos. Respondendo à uma filosofia racionalista que o precedeu, principalmente na figura de Réne Descartes, Baumgartem afirmava que o conhecimento se dava não apenas pela razão, mas também pela sensibilidade.
Baumgarten construiu uma teoria na qual o modo como nosso corpo habita o mundo e se relaciona com os objetos ao redor tem uma parte importante no processo de conhecimento.
Figura 6 – Criança em atividade artística
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Pode parecer comum hoje, para nós, que o conhecimento se dê também por aquilo que sentimos. Até mesmo na escola aprendemos, desde cedo, que as atividades físicas e artísticas, que se utilizam do corpo e das sensações, fazem parte de nosso aprendizado, mas isso nem sempre foi assim. O filósofo que marcou o racionalismo e o pensamento no Ocidente por muito tempo e que, ainda hoje, determina certo modo de pensar das ciências, foi Réne Descartes. Esse filósofo criou um pensamento no qual o único conhecimento confiável das coisas do mundo só podia se dar por meio da razão, da construção de um percurso argumentativo e questionador do mundo. Para Descartes, aquilo que nos chegava pelas sensações corpóreas devia ser colocado à prova pela razão, pois as sensações podiam nos enganar e criar ilusões. Por exemplo, quando sonhamos, sentimos cada coisa como se fosse real e acreditamos nelas. Porém, quando despertos, pensamos sobre aquilo e concluímos que foi apenas um sonho e que os sonhos são diferentes da realidade.
Figura 7 – Retrato de Réne Descartes
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Baumgarten refuta o pensamento de Descartes e mostra como o conhecimento também se dá pela sensibilidade. É no interior dessa teoria do conhecimento que ele cria sua estética, com o intuito de pensar o modo com que percebemos o mundo e como podemos pensar uma série de conceitos e categorias para compreender essa relação do sensível com o conhecimento.
Baumgarten apresenta um modo de pensamento da arte que não tem nada a ver com as teorias da arte que o precederam. O autor não pretende criar ou pensar nenhuma regra para a apreciação da arte ou para o fazer artístico, mas sim pensar que estético pode ser um qualificativo do pensamento. Ou seja, que pode haver um pensamento que tem como característica e qualidade ser estético. Mas o que significa dizer que um pensamento tem a qualidade de ser estético?
Segundo Baumgarten (1993, p. 95), “A Estética (como teoria das artes liberais, como gnoseologia inferior, como arte de pensar de modo belo, como arte do análogo da razão) é a ciência do conhecimento sensitivo”.
Mas, se Baumgarten está interessado em pensar o conhecimento, qual a necessidade de se pensar isso a partir da arte? É que, para o autor, a arte e o pensamento tem algo em comum: a busca pela perfeição e pela beleza. Assim, se nos voltamos para o pensamento da arte, podemos retirar consequências para nossas formas de pensamento e para o conhecimento do mundo.
Mas essa arte para a qual nos voltamos em busca de conhecimento não é mais pensada em uma relação de dependência com a moral, a religião ou a política. Ela é agora autônoma. A arte, ao se fazer, pensa por si só. Ela dá significado ao mundo, não precisando de uma moral externa que lhe determine como deve ser ou fazer, nem de um conjunto de regras que lhe diga qual o melhor jeito de dizer ou mostrar um determinado tema ou assunto. O modo como a arte pensa, agora, diz respeito a ela mesma, às suas próprias formas e reflexões.
Figura 8 – “Retrato do Papa Inocêncio X” de Diego Velázquez, 1650
Fonte: Wikimedia Commons
Figura 9 – “Estudo do Retrato do Papa Inocêncio X segundo Velázquez”, de Francis Bacon, 1953
Fonte: Arte faz Parte (2013, on-line).
Em 1790, o filósofo alemão Immanuel Kant publica o livro “Crítica da faculdade do juízo”. O livro estava inserido dentro de um projeto maior do autor, o de criar todo um novo sistema filosófico de pensamento. Antes de voltar-se para as questões estéticas com a crítica do juízo, o autor havia publicado a “Crítica da razão pura” e a “Crítica da razão prática”. A primeira dedicada a pensar as bases do pensamento, refundando do zero todo o pensamento filosófico vigente até então.
A crítica de Kant estava inserida no contexto do debate que se desenvolvia na filosofia de então, entre os ditos empiristas e os racionalistas. Estes, adeptos do filósofo René Descartes, sobre o qual falamos anteriormente, acreditavam que todo conhecimento vinha do uso exclusivo da razão. Apenas questionando nosso próprio modo de pensar e, especialmente, duvidando de nossas percepções que vêm pelo sentido, é que seríamos capazes de conhecer o mundo. Para os empiristas, por sua vez, que desenvolveram um sistema de pensamento depois de Descartes, só conhecíamos o mundo a partir de nossos sentidos. O ser humano, assim, nascia como uma tábula rasa, cuja experiência sensível na relação com as coisas do mundo ia desenhando os conhecimentos adquiridos.
Figura 10 – Retrato de Kant
Fonte: Wikimedia Commons
Figura 11 – Retrato de David Hume
Fonte: Wikimedia Commons
Kant se inseriu nesse debate com o intuito de solucionar o conflito que até então parecia irreconciliável entre empiristas e racionalistas. De maneira próxima àquilo que Baumgarten fez, Kant afirma que o conhecimento do mundo se dá tanto pela razão quanto pelos sentidos.
A partir dessa ideia o autor cria todo um sistema de pensamento no qual busca a universalidade do pensamento. Ou seja, o autor estava interessado não simplesmente em conhecer as coisas do mundo, mas principalmente em criar um sistema que pensasse as formas do próprio pensamento, de tal modo que pudesse ter certeza de que aquilo que conhecia era verdadeiro. Isso implicava que, dado um determinado problema (por exemplo, uma conta matemática) todo indivíduo que se propusesse a solucioná-lo deveria chegar ao mesmo resultado. Isso mostraria a certeza e a universalidade do pensamento.
Mas o modo pelo qual Kant chegou a esse sistema não nos interessa aqui diretamente. Estamos, antes, interessados em como o autor se volta para o pensamento estético, tentando inseri-lo nesse projeto mais amplo. E é no livro “Crítica da faculdade do juízo” que fará esse desvio para a estética.
O juízo ao qual se refere Kant nessa obra é o juízo de gosto. Afinal, para o autor, é disso que se trata quando estamos diante de obra de arte e sentimos isso ou aquilo outro e, em seguida, emitimos um juízo do tipo: “gosto” ou “não gosto”. Dizemos: “isso me agrada” ou “isso me incomoda”, “sinto algum prazer com isso” ou “sinto algo desagradável”. Enfim, diante de uma arte, emitimos um juízo de gosto. E como ele parece, a princípio, bastante subjetivo e individual, Kant se preocupou em pensar a possibilidade da universalidade do juízo de gosto.
Ou seja, seria possível pensar que quando duas pessoas, diante de uma mesma pintura, emitem dois juízos de gosto completamente opostos, ainda haveria aí alguma certeza ou conhecimento universal determinando tais juízos? Ou será, ao contrário, que com o gosto estaríamos completamente soltos no mundo, sem nenhuma certeza ou pilar no qual segurar-se? Essas eram as questões às quais Kant se dedicou a pensar no livro no qual pensou as questões estéticas.
Kant analisa, assim, duas categorias principais que compreende como sendo os sentimentos causados pelo contato com a arte: o belo e o sublime.
Figura 12 – “O nascimento de Vênus”, de Sandro Botticelli (1485-1486)
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O autor começa a discussão a partir do pensamento do belo e se empenha por pensar aquilo que a beleza da arte ou da natureza nos causa como sentimento. Ele divide, assim, três tipos de sentimentos parecidos, mas que pretende afirmar como diferentes. Trata-se do agradável, do belo e do bom. Kant afirma que sentimos um prazer, ou complacência, com essas três experiências. Mas o bom e o agradável são duas sensações bastante influenciadas por nossa razão. Afinal, quando julgamos algo bom, estamos analisando e racionalizando sobre o que é a bondade. Do mesmo modo, quando achamos algo agradável, estamos interessados demais no objeto agradável para conseguir dele fazer um julgamento totalmente livre em relação à razão. E é isso que está em jogo para Kant: o juízo de gosto, ou o juízo estético, deve ser livre.
Pode-se dizer que, entre todos estes modos de complacência, única e exclusivamente o do gosto pelo belo é uma complacência desinteressada e livre; pois nenhum interesse, quer o dos sentidos, quer o da razão, arranca aplauso. (KANT, 2012, p. 46)
É a partir dessa ideia que Kant concebe o conceito de “livre jogo das faculdades”. Trata-se de entender que, dentre as faculdades que possuímos, a do entendimento e a da imaginação, deve haver um livre jogo no qual nem uma nem outra se sobressaia ou domine a outra.
A universalidade buscada por Kant nesse pensamento fica garantida pela ideia de que toda representação que nos aparece está conforme às regras e fins últimos da natureza. Sendo assim, tudo aquilo que, em um jogo livre das faculdades, sentimos ou ajuizamos sobre um determinado objeto, está também conforme essas leis. Mesmo que meu juízo seja diverso do seu.
Mas há, ainda, a outra categoria à qual Kant se debruça para pensar o juízo estético: o sublime. De acordo com esse filósofo alemão (2012):
O belo da natureza concerne à forma do objeto, que consiste na limitação; o sublime, contrariamente, pode também ser encontrado em um objeto sem forma, na medida em que seja representada ou que o objeto enseje representar nele uma ilimitação. [...] Enquanto o belo comporta diretamente um sentimento de promoção da vida, e por isso é vinculável a atrativos e a uma faculdade de imaginação lúdica, o sentimento do sublime é um prazer que surge só indiretamente, ou seja, ele é produzido pelo sentimento de uma momentânea inibição das forças vitais e pela efusão imediatamente consecutiva e tanto mais forte das mesmas. (KANT, 2012, p. 89)
Kant afirma que o belo é aquilo que vemos da forma de uma obra de arte ou mesmo de uma forma na natureza. Assim, sentimos o belo nas cores de uma pintura, no traçado sinuoso de um corpo retratado ou, ainda, nas formas das pétalas de uma flor. O sentimento do belo está como que contido dentro desses limites do que vemos e sentimos. Já o sublime é como uma espécie de arrebatamento. É quando vemos algo que, por uma fração de segundos, nos faz perder o ar. Se o belo nos causa uma alegria contida, limitada, mas imediata, o sublime, em um primeiro momento, nos assusta, retira nossa energia como se estivéssemos em uma situação limite. Mas, quando passado o susto, nos relembramos da experiência, nossa vitalidade retorna ainda mais forte do que antes. Nos sentimos extasiados.
Figura 13 – “Caminhante sobre o mar de névoa”, de Caspar Friedrich (1817)
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Figura 14 – “Naufrágio em cargueiro”, de William Turner (1810)
Fonte: Wikimedia Commons
Para Kant, o sublime é aquilo que é absolutamente grande, aquilo que ultrapassa os limites de nossa experiência e que não tem comparação com nada mais. Mas o sublime, diz o autor, não é a natureza ou o objeto que me causa tal sensação. O sublime é a minha própria disposição para sentir e viver tais experiências. Ele mostra, assim, que existe algo em mim que é maior do que toda medida dos sentidos que acredito conhecer. E é claro que isso coloca um problema para a busca pela universalidade do conhecimento que Kant (2012) procura, mas ao qual o autor responde da seguinte maneira:
A qualidade do sentimento sublime consiste em que ela é, relativamente à faculdade de ajuizamento estética, um sentimento de desprazer em um objeto, contudo representado ao mesmo tempo como conforme a fins; o que é possível pelo fato de que a incapacidade própria descobre a consciência de uma faculdade ilimitada do mesmo sujeito, e que o ânimo só pode ajuizar esteticamente a última através da primeira. (KANT, 2012, p. 107)
Kant justifica a universalidade do juízo de gosto, diante do ilimitado, pelo fato de que, ao sermos colocados diante de tal experiência, passamos a conhecer uma faculdade ilimitada que desconhecíamos. E mesmo que não a compreendamos completamente, o fato de conseguirmos avaliar essa faculdade a partir de nossa própria limitação.
Trata-se de um assunto um tanto quanto complicado e aprofundado das discussões filosóficas. Mas o que nos interessa aqui perceber é como autor concebe um sistema de pensamento no qual o campo da estética é sistematizado de tal forma que é considerado como uma das formas de conhecermos o mundo.
Você deve lembrar-se que sobre as relações entre técnica e arte. Lá, discutimos como o desenvolvimento técnico influencia a produção artística, fazendo até com que novas linguagens artísticas surjam, como foi o caso da fotografia e do cinema. Retomaremos aqui algumas dessas ideias para pensar como essas transformações da arte, especialmente após a revolução industrial, impactaram o pensamento estético. Afinal, a estética sempre lida com o pensamento da arte a partir das questões e problemas que o tempo presente coloca para a filosofia. Assim, passa a fazer sentido, a partir do surgimento da fotografia, discutir como a entrada dessa técnica no campo da arte altera os valores que até então conhecíamos.
Este capítulo se dedicará a estudar dois filósofos que discutiram incessantemente as relações entre a arte e a técnica na contemporaneidade: Walter Benjamin e Theodor Adorno. Ambos fizeram parte da chamada Escola de Frankfurt.
A Escola de Frankfurt foi uma vertente da teoria social e da filosofia que surgiu em 1924, em torno de uma série de teóricos de influência marxista. Com mais de duas gerações se sucedendo nessa vertente de pensamento e, apesar das diferenças de pensamentos de seus membros, em comum entre seus autores estava a crítica feita ao sistema capitalista, assim como ao socialismo soviético. Para esses autores, a maior preocupação do pensamento crítico deveria ser o pensamento das condições de possibilidades da realaram , em algum momento, para o pensamento da arte e da cultura. Mase voltaram, er Marcuse, Jembros, em comum entre seus autoresização de transformações sociais. Alguns de seus principais membros foram: Horkheimer, Walter Benjamin, Hebert Marcuse, Jürgen Habermas e Theodor Adorno, dentre outros. Todos esses autores se voltaram, em algum momento, para o pensamento da arte e da cultura, com o intuito de fazer uma crítica social a partir do papel da cultura e da arte na sociedade e na política.
A importante diferença introduzida no pensamento da arte por esses autores foi a afirmação de uma dimensão política da arte que, até então, só aparecia como camada secundária das discussões anteriores. Tanto Adorno quanto Benjamin compreendiam que a arte tinha um papel de extrema importância no jogo ideológico da política, influenciando as pessoas a pensarem de uma determinada forma ou de outra.
Vale lembrar que a palavra ideologia, em seu sentido comum, é compreendida como o conjunto de pensamentos que forma a visão de mundo de um determinado indivíduo, influenciando seu modo de agir politicamente na sociedade. Desse ponto de vista, todo indivíduo possui sua própria ideologia, seu conjunto de ideias que norteiam suas ações e posicionamentos políticos. Mas, para os filósofos frankfurtianos, havia ainda, outro sentido negativo da ideologia. Usando o termo sob um viés crítico, eles compreendiam a ideologia como um instrumento de dominação dos grupos de pessoas em sociedade. Essa dominação era exercida por meio do convencimento das pessoas de que certas ideias seriam mais interessantes do que outras. Para esses filósofos, os processos de dominação ideológicos alienavam as pessoas porque as afastava de seus próprios processos de decisão e de pensamento crítico. Ao invés de pensar por si próprios, os indivíduos sob dominação ideológica já aceitariam como certo um conjunto de ideias que determinariam suas ações, sem questionar se alguma dessas ideias não estaria errada.
Figura 15 – A televisão, desde a sua invenção, tem sido um dos meios de comunicação mais influentes da indústria cultural
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Tanto Benjamin quanto Adorno começaram a pensar as transformações nos modos de percepção que a arte da fotografia e do cinema teriam operado nas sociedades. Será que a imagem em movimento teria nos deixado mais preguiçosos ao pensamento crítico? Será, ainda, que o fato da tecnologia permitir reproduzir a realidade de maneira cada vez mais ilusória, não nos transformou em pessoas mais facilmente enganadas pelas ilusões ideológicas da imagem?
Benjamin explica em seu livro “A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica” como no teatro o espectador percebe que se trata de uma encenação. Pois há a separação entre a plateia e o palco. Vemos as cortinas que se abrem e fecham no início e no fim do espetáculo. Podemos ver as entradas e saídas de cena dos atores etc. Já no cinema, o uso da máquina, apesar de sua artificialidade, teria dado aos filmes uma maior sensação de ilusão, pois a imagem que chega ao espectador não mostra o trabalho da máquina, não nos permite ver os bastidores da feitura do filme.
No teatro, a localização do palco nos faz reconhecer o caráter ilusionista da encenação. Essa localização não existe no cinema. Sua natureza ilusionista é de segunda ordem e está no resultado da montagem. No estúdio de cinema, a máquina penetrou tão profundamente na realidade que o aspecto aparentemente puro desta última, sem o corpo estranho da máquina, resulta de um processo especial, ou seja, a filmagem por meio de uma máquina fotográfica própria e a montagem com outras tomadas do mesmo tipo. Aqui, a realidade aparentemente despojada de máquinas é a mais artificial das realidades. (BENJAMIN, 2012, p. 24)
Mas Benjamin não vê com olhos negativos o surgimento do cinema. Ao contrário, defende como a primeira arte verdadeiramente coletiva. Pois, ele afirma que mesmo a criação dos museus e galerias, que tentaram fazer com que mais pessoas tivessem acesso à pintura, não constituiu uma mudança nesse sentido. A pintura, para Benjamin, possui um caráter de contemplação que é individual e imutável. Mas com o crescimento das populações urbanas e da classe proletária, era preciso que se criasse uma arte verdadeiramente coletiva. E foi isso que o cinema fez.
Figura 16 – O cinema é a primeira arte verdadeiramente coletiva, de acordo com Walter Benjamin
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Benjamin aponta como esse novo modo de recepção e apreciação da arte transformou os modos de percepção dos indivíduos em sociedade. E mudou, principalmente, a relação das massas com a arte. Para o autor, os indivíduos se tornam mais críticos exatamente por sua reação à obra de arte ser coletiva. Se alguns filósofos criticavam o cinema por acreditar que as pessoas só conseguem ter um olhar crítico perante a arte quando estão em quietude e recolhimento, Benjamin afirma exatamente o oposto: a obra de arte, quando causa diversão nas pessoas, mergulha e penetra no interior delas. O autor defende, assim, contrariando outros pensadores críticos ao cinema, que a distração é um meio eficaz de recepção da arte, afinal nós nos habituamos a fazer distraídos diversas coisas ao mesmo tempo. E isso não significa de maneira alguma que não aprendemos nada enquanto o fazemos. O mesmo ocorreria, segundo o autor, com o cinema.
Para além de concordarmos ou não com o filósofo, a grande mudança introduzida por seu pensamento para o campo estético foi a conexão entre as mudanças na percepção e a teoria da arte. A partir das mudanças técnicas sofridas pela arte, Benjamin analisou como a percepção foi afetada por isso e, como consequência, também a arte.
Em seu livro “A indústria cultural”, Adorno mostra como sua visão das transformações sofridas pela arte com a introdução da técnica em seus meios de produção não foi tão positiva quanto a de Benjamin. Para Adorno, o entrelaçamento entre arte e técnica teria dado ensejo ao que denominou de “indústria cultural”.
A indústria cultural, em Adorno, apresenta a ideia de que, com a introdução dos meios técnicos de produção no fazer artístico, a arte teria perdido seu caráter de contestação às formas de vida vigentes. A arte, antes, se diferenciava por sua autonomia, por ser pensada enquanto campo separado dos outros da vida. Assim, a lógica que dominava a produção mercadológica de produtos para o comércio nada tinha a ver com as obras de arte, produzidas no interior de outra lógica, diversa. E por essa diferenciação e separação é que a arte era capaz de resistir à lógica da dominação e ao poder ideológico do mercado capital. Mas com o embaralhamento entre esses dois campos, a arte teria passado a ser apenas mais um nicho de mercado. Incapaz de se diferenciar da ideologia do mercado. Esse nicho teria sido chamado por Adorno de “indústria cultural”.
Esse processo de indiferenciação entre arte e mercado teria tornado, segundo Adorno, tudo equivalente. Todos aqueles processos de apreciação e crítica que autores como Kant teriam apontado há alguns séculos poderiam, agora, ter se tornado inúteis. Pois os produtos da indústria cultural já chegariam prontos aos indivíduos, que deixaram de ser apreciadores para serem consumidores de arte. A indústria, agora, é quem faz todo o processo de pensar, classificar e categorizar os produtos da arte que chegam até nós. Nos tornamos, assim, menos críticos, mais alienados e dominados pela ideologia do sistema capitalista.
Mas o problema, para Adorno, não está no cinema em si. Não está na linguagem artística, mas no modo como essa indústria funciona, interessada apenas em vender. Se estudamos lá atrás como a arte se autonomiza, em determinado momento, deixando de servir ao poder do Estado, da religião ou da moral, o que Adorno aponta é que na indústria cultural a arte teria perdido sua autonomia para começar a servir ao poder do capital, ao poder das grandes empresas envolvidas na produção cinematográfica. E essas empresas, muitas vezes, estariam ainda ligadas a governos interessados também em manipular a população. Como empresas interessadas apenas no valor de venda de suas obras, é claro que aquilo que pauta as criações artísticas é qualquer coisa que dê mais dinheiro em um determinado momento. Daí a ideia de que tudo se torna equivalente. Afinal, tudo aquilo que pode ser comprado e vendido passa a ter um mesmo valor: o valor de mercadoria.
Benjamin escreveu a maior parte de seu trabalho entre os anos 1920 e 1940 e Adorno entre 1940 e 1960. Isso já faz, no mínimo, 60 anos. De lá até aqui houve uma série de outras mudanças no desenvolvimento técnico e tecnológico, os quais, como sempre, transformaram a arte. Vemos, por exemplo, o surgimento da chamada videoarte, a introdução dos games no mundo da arte, o surgimento dos e-books, os celulares com localização em tempo real, a criação das redes sociais como o Facebook e o Instagram, o surgimento do YouTube e das redes de streaming como a Netflix e uma infinidade de outras coisas. Muitas dessas novas técnicas foram introduzidas no mundo da arte. Como você essas mudanças? Você acha que as coisas ficaram ainda mais diferentes em relação aos diagnósticos feitos por Adorno e Benjamin? Você vê essas mudanças como positivas ou negativas? Por um lado, nos tornamos mais críticos, manifestando nossas ideias e pensamentos pela internet. Mas, por outro, vimos se espalharem ações nada interessantes como as criações e distribuições das chamadas fakenews. O que você pensa sobre isso?
ADORNO, T. W. Indústria cultural e sociedade. Tradução de Julia Elisabeth Levy. São Paulo: Paz e Terra, 2002.
ARISTÓTELES. Poética. São Paulo: Editora Nova Cultural, 2004.
BAUMGARTEN, A. G. Estética: a lógica da arte e do poema. Tradução de Miriam Sutter Medeiros. Petrópolis: Vozes, 1993.
BENJAMIN, A. A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica. In: BENJAMIN, A. Benjamin e a obra de arte. Tradução de Marijane Lisboa, Rio de Janeiro: Contraponto, 2012.
CAUQUELIN, A. Teorias da arte. Tradução de Rejane Janowitzer. São Paulo: Martins, 2005.
KANT, I. Crítica da faculdade do juízo. Tradução de Valério Rohden e António Marques. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2012.
PLATÃO. A república de Platão. Tradução de J. Guinsburg. São Paulo: Perspectiva, 2010.